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A Discussão Sobre a Clonagem

A técnica de clonagem de mamíferos

Franklin David Rumjanek

Departamento de Bioquímica Médica,

Universidade Federal do Rio de Janeiro

 

Quidquid agis, prudenter agas et respice finem

(Qualquer coisa que faças, age com prudência e considera o fim. -- Provérbio medieval)

O anúncio de que já existem projetos para a clonagem de seres humanos vem provocando grande polêmica. Apesar dos sucessos obtidos com outros mamíferos (como ovelhas, bois e porcos), é preciso considerar que o processo de clonagem é ainda muito ineficiente e apresenta grande número de dificuldades, o que torna prematura qualquer tentativa de aplicá-lo a humanos. O desenvolvimento da técnica pode trazer muitos benefícios (como na produção de tecidos para transplantes), mas será difícil justificar a clonagem de um indivíduo.

O termo ‘clone’ foi cunhado em 1903 pelo botânico Herbert J. Webber, que pesquisava hidridação de plantas no Departamento de Agricultura dos Estados Unidos. O significado do termo, definido pelo próprio Webber é “uma colônia de organismos que, de modo assexuado (sem intervenção de sexo), deriva de apenas um progenitor”. A maçã Granny-Smith, variedade apreciada por gerações de degustadores de boas tortas, é um dos muitos exemplos de um clone desenvolvido por horticultores. Desde sua criação, o termo caiu no agrado dos cientistas e tem sido usado até os dias atuais, sem que a definição original tenha se desvirtuado.

Os clones não chamaram maior atenção durante muitos anos, pois a clonagem restringia-se principalmente a plantas e a protozoários -- os últimos multiplicam-se naturalmente de forma assexuada. Hoje, porém, o interesse pelos clones renasceu agudamente, com a aplicação da técnica da clonagem a seres que normalmente se reproduzem de forma sexuada. Em 1997, a clonagem histórica da ovelha Dolly -- um clone autêntico, por ter sido gerada a partir de uma célula somática (já diferenciada) de um doador adulto -- deflagrou um intenso debate, que prossegue até os dias de hoje. Esse tipo de clonagem provocou sensação devido à percepção imediata de que o processo poderia em pouco tempo ser realizado com o ser humano, o que compreensivelmente inflamou a imaginação popular.

No entanto, guardadas as devidas proporções, a história da clonagem de animais não é novidade. Esse tipo de pesquisa já vinha ocorrendo desde os anos 70, com graus variados de sucesso. Na verdade, no início dos anos 80 os cientistas estavam quase desistindo da clonagem de mamíferos. Em 1984, o pesquisador David McGrath e o imunologista iugoslavo Davor Solter, por exemplo, chegaram a anunciar que os recursos técnicos da época estavam esgotados: “A atividade diferencial dos genomas materno e paterno e os resultados apresentados aqui sugerem que a clonagem de mamíferos através de simples transferência nuclear é biologicamente impossível.” A atividade diferencial dos genomas é o imprinting (ver adiante o que é).

Essa perspectiva não desanimou outras gerações de pesquisadores e, como resultado, camundongos, carneiros, bezerros e porcos já foram clonados. No entanto, longe de constituir um arauto para a clonagem humana, esses aparentes sucessos trouxeram em si uma mensagem cautelar que pode ser resumida no seguinte: (1) o prodedimento de clonagem é ainda muito ineficiente para todas essas espécies (em média, só 1% dos ovócitos manipulados desenvolve-se até a fase adulta), e as razões dessa ineficiência ainda são em grande parte desconhecidas, e (2) o fator mais importante para o desenvolvimento correto do clone talvez seja a chamada ‘reprogramação’ do genoma transferido para a célula recipiente, um fenômeno sobre o qual é mínima a informação disponível.

 

Como é realizada a clonagem

Isso permite perceber que as dificuldades de ordem técnica e biológica ainda existentes certamente exigirão um trabalho científico bem mais minucioso antes que a clonagem de vertebrados superiores possa ser considerada uma prática rotineira. Para destacar essas dificuldades, as etapas da clonagem são descritas a seguir, chamando-se a atenção em especial para o fato de que a falta de conhecimento é precisamente o que torna a idéia de clonar seres humanos um tanto prematura.

No esquema geral da clonagem, os principais protagonistas são a célula receptora (a célula que receberá o núcleo transplantado) e a célula doadora do núcleo. Em geral, a célula usada para receber o material genético da célula doadora é  um zigoto, ou seja, um ovo fertilizado por um espermatozóide (que, portanto, contém dois pronúcleos, com material genético materno e paterno) ou um ovócito, ou seja, um ovo não fertilizado (que só contém material genético materno).

Os ovócitos, obtidos pela estimulação da ovulação com hormônios esteróides, são colhidos e transferidos a um meio de cultura, onde podem ou não ser fertilizados com espermatozóides. Antes da transferência do núcleo da célula doadora para o ovócito (ou o zigoto), é preciso retirar o núcleo do ovócito (ou do zigoto). Essa etapa, chamada de enucleação, é realizada cuidadosamente com uma micropipeta ligada a um micromanipulador, que literalmente suga o material nuclear. Durante a enucleação, deve-se ter um cuidado especial para que a micropipeta não penetre na membrana plasmática do ovócito, porque eventualmente essa membrana receberá o novo material nuclear e nessa ocasião não poderá vazar.

Em seguida, também usando uma micropipeta, acrescenta-se o carioplasto da célula doadora. O carioplasto é o núcleo retirado da célula doadora, ainda rodeado por uma camada delgada de citoplasma e de membrana plasmática. Alternativamente, pode-se transplantar também a célula inteira contendo o núcleo que dará origem ao clone. Em ambos os casos, o material transplantado (o carioplasto ou a célula inteira) é fundido ao ovócito por meio de eletrofusão (choques elétricos de baixa intensidade), ou através da adição do vírus Sendai inativado, que promove a fusão das membranas. A partir daí, o clone poderá se desenvolver.

 

Os cuidados com as células

O processo aparenta ser simples, mas na verdade é necessário considerar uma série de cuidados técnicos com as células receptora e doadora.

A célula receptora pode ser o ovócito ou o zigoto. O uso do primeiro apresenta algumas vantagens em relação ao uso do outro: o ovócito enucleado dá ao núcleo transplantado mais tempo para adaptar-se do que o zigoto. Nesse último caso, o prazo para transferência do núcleo é mais curto, porque a célula receptora já está fertilizada e, portanto, o programa de desenvolvimento do embrião já está em curso -- logo após a fertilização começa a ativação, processo que consiste em uma série de alterações dentro da célula, seguidas pelas divisões celulares rápidas, típicas do embrião.

No entanto, como veremos adiante, o zigoto também oferece algumas vantagens sobre o ovócito, no que diz respeito à ativação. Sabe-se que resultados melhores foram obtidos quando, antes do transplante nuclear, o ovócito havia sido coletado em um estágio específico (a metáfase) da segunda divisão que ocorre durante a meiose (processo de divisão que gera células com a metade do número de cromossomos da ‘célula-mãe’). Isso indica que o próprio ambiente do citoplasto (o ovócito sem o núcleo) é importante para a reprogramação do núcleo transferido.

Por razões ainda desconhecidas, os ovócitos de algumas espécies são melhores que outros para o processo de clonagem. É mais fácil, por exemplo, obter a clonagem com ovócitos de carneiro do que com as mesmas células de camundongos.

Em relação às células doadoras dos núcleos, vários fatores também têm que ser levados em conta. A primeira pergunta é: qual a melhor célula doadora? A resposta é difícil, pois sabe-se apenas que algumas células funcionam como doadoras e outras não. Além disso, para que a doação do núcleo seja funcional, não é necessário que as células venham diretamente de um embrião, como ficou bem claro no caso de Dolly, no qual as células doadoras eram da glândula mamária de uma ovelha adulta.

Outra condição indispensável para as células doadoras é que estas têm que estar vivas. É comum incubá-las por dois ou três dias em meio de cultura, antes do transplante nuclear. Essa exigência já basta para eliminar a possibilidade de realizar a clonagem a partir de tecidos de pessoas mortas, se não houve preservação das células (hoje, no entanto, é possível preservar células indefinidamente, congeladas, desde que a água intracelular seja substituída por solventes que não formem cristais no congelamento). A idéia de clonar mortos ilustres ficou bem presente no imaginário popular quando Dolly foi clonada. Agora sabe-se que não será possível clonar pessoas como Isaac Newton, Albert Einstein, Adolf Hitler e outros (por variadas motivações) candidatos à imortalidade.

As células doadoras de núcleos devem ainda estar em um estado de dormência (chamado de ‘quiescência’) e portanto na fase G0 do ciclo celular -- as outras fases desse ciclo são G0/G1 e G2. Essa dormência é induzida in vitro retirando-se os nutrientes do meio de cultura, e esse procedimento é importante porque o núcleo da célula doadora tem que interromper o seu próprio programa para depois ser reprogramado no interior do citoplasto receptor.

 

Imprinting, ativação e telômeros

O núcleo doado também precisa conter toda a carga genética materna e paterna, por causa do fenômeno chamado de imprinting, revelado em experiências realizadas com camundongos e coelhos. O imprinting -- que ocorre durante a produção dos gametas, como o óvulo e o espermatozóide) -- é um programa de regulação ainda desconhecido que estabelece quais genes estarão ativos e quais ficarão inativos.

Descobriu-se que, em função desse fenômeno, as contribuições genéticas materna e paterna para o desenvolvimento do embrião não são idênticas. Um ovócito enucleado que, por exemplo, só receba material genético masculino (como o de um espermatozóide) desenvolverá estruturas extrafetais, como a placenta, mas não as estruturas do feto propriamente ditas, que ficam sob a responsabilidade da porção materna do genoma embrionário. Portanto, se o conjunto genômico completo não estiver presente durante a transferência do núcleo da célula doadora, o embrião não se desenvolverá.

A seguir, é preciso considerar o fenômeno da ativação, como mencionado acima. Com a ativação do ovócito fertilizado, inicia-se uma cascata de eventos relacionados ao preparo dessa célula para o eventual desenvolvimento embrionário. O fenômeno inclui, após a fertilização, alterações na membrana, para impedir a entrada de outros espermatozóides. Muitos desses eventos não são bem compreendidos, mas algumas das manifestações já estão bem definidas em ovócitos de camundongos, como os aumentos repetitivos, pulsáteis, da concentração de cálcio dentro da célula. Outros fatores envolvidos no fenômeno da ativação -- a participação do gás NO (óxido nítrico), por exemplo -- estão sendo estudados no momento.

Fica claro, porém, que se o ovócito não fertilizado for escolhido como o receptor do núcleo, torna-se necessário mimetizar o fenômeno da ativação, para que o embrião vingue. Como a reprodução fiel desses eventos ainda não está controlada, é preferível então escolher o zigoto como célula receptora (mesmo que a janela temporal para o transplante do núcleo seja mais estreita do que com o ovócito), já que a ativação é deflagrada naturalmente pelo espermatozóide.

Em relação ao núcleo transplantado, uma questão ainda em aberto é a do tamanho dos telômeros, as estruturas dos cromossomos que controlam a longevidade das células (ver ‘Dolly já nasceu velha?’, em CH nº 152). Também está em estudos o fenômeno da heteroplasmia mitocondrial, no qual a presença de mais de um tipo de DNA mitocondrial na mesma célula pode contribuir para o insucesso da clonagem.

 

Para que clonar humanos?

Com todas essas dificuldades, não surpreende que ocorram tantos insucessos na clonagem. Se a eficiência do processo gira em torno de 1%, o êxito está quase no limite do aleatório, apesar da sofisticação técnica crescente nessa área. No entanto, o que mais preocupa os pesquisadores é o fato de não se poder atribuir as falhas da clonagem a causas específicas -- uma mensagem clara para que os cientistas voltem à prancheta, antes de qualquer tentativa mais ousada.

Por outro lado, o conhecimento obtido com as clonagens de carneiros, vacas, camundongos e porcos deixa bem claro que a clonagem de humanos não representa uma situação particularmente difícil do ponto de vista técnico. Em outras palavras, a clonagem do homem não deve reservar surpresas no contexto laboratorial. Assim que os problemas com as outras espécies forem superados -- e isso é só uma questão de tempo --, a clonagem do homem necessitará apenas de alguns pequenos ajustes.

Resta saber: para que clonar seres humanos? No caso de bovinos, caprinos e suínos, as vantagens são óbvias. E quanto a homens e mulheres? As pessoas, muitas vezes, esquecem que um clone não seria uma entidade instantânea. Ele teria que passar por uma gestação de nove meses e cresceria tal e qual seus semelhantes não clonados. Os clones teriam que ser educados e estariam sujeitos a influências talvez bem diversas daquelas que moldaram o indivíduo que doou o seu núcleo. Além disso, devido à ‘norma de reação’, os clones gerados podem até assumir aparências distintas daquela do clone fundador. Segundo essa norma, mesmo que uma característica seja ditada pela constituição genética, o ambiente precisa ‘permitir’ a manifestação plena do gene -- uma criança filha de pais altos (com predisposição genética para ser alta) não crescerá como devia se não se alimentar corretamente em certa fase da vida.

Assim, nada impediria que o clone de Isaac Newton, se isso fosse possível e se ele vivesse em uma região costeira, viesse a ser por exemplo um musculoso surfista, ou que o clone de Albert Einstein virasse um pagodeiro e o de Adolf Hitler se tornasse um assistente social em uma favela carioca. A técnica da clonagem pode vir a revelar como cultivar órgãos para transplantes, uma meta verdadeiramente desejável, mas será difícil encontrar argumentos que justifiquem a clonagem de um indivíduo.

 

Sugestões para leitura

ALDOUS, P., ‘Can they rebuild us?’ in Nature  410, pp. 622, 2001.

SOLTER, D., ‘Mammalian cloning: advanced and limitations’ in Nature Reviews Genetics, 1, pp. 199, dezembro/2000.