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BIOÉTICA E CLONAGEM

Crítica a um nascimento anunciado

                                                                         Volnei  Garrafa*

Programa de Pós-graduação em Ciências da Saúde,

Núcleo de Estudos e Pesquisas em Bioética,

Universidade de Brasília

 

*Volnei Garrafa é presidente da Sociedade Brasileira de Bioética (gestão 2001-2004) e presidente do 6o Congresso Mundial de Bioética (Brasília, 30/10  a  03/11/2002)

 

Um aspecto essencial no debate sobre a moralidade da clonagem em humanos diz respeito à vulnerabilidade dos futuros indivíduos geneticamente idênticos. Os críticos mais radicais usam esse entre outros argumentos para classificarem os avanços da ciência como perigosos. É impossível, entretanto, imaginar nossa sociedade como eterna ou imutável. Por outro lado, os benefícios decorrentes do progresso científico precisam ser alcançados. Resta então agir – e permitir a continuidade das pesquisas -- com prudência e tolerância, sabendo respeitar os limites entre o necessário e o possível.

Poucas notícias causaram tanto alvoroço na mídia internacional quanto o nascimento da ovelha Dolly, divulgado pelo jornal norte-americano The New York Times de 23 de fevereiro de 1997, antecipando-se ao artigo publicado pelo pesquisador escocês Ian Wilmuth e pela sua equipe na revista britânica Nature (27/02/97). Parte da surpresa ficou por conta do grande público, pois se tratava de um fato previsto, de um nascimento amplamente anunciado, pelo menos para aqueles que lêem ou lidam com ciência.

Uma coincidência a ser analisada inicialmente é que a clonagem animal veio através da ovelha, símbolo da redenção humana no imaginário cristão. Inúmeras vezes Jesus Cristo se refere ao “rebanho” nos seus evangelhos. A “anunciação” de um novo tempo, portanto, se deu através de Dolly, produzida operacionalmente desde julho de 1996 nos laboratórios da Universidade de Edimburgo, na Escócia. Esse fato gerou reações contraditórias que foram desde o enaltecimento da ciência até sua completa rejeição. Repentinamente a clonagem ficou polarizada entre manifestações de endeusamento ou de demonização.

O mito da imortalidade

Adão foi instigado por Eva -- clonada pelo Criador, a partir de células de uma costela do primeiro -- a comer o fruto da árvore da sabedoria, aquela que se referia ao ‘bem’ e ao ‘mal’. Repentinamente Adão descobre-se um ser nu, frágil, precário. E Deus expulsa-o do paraíso, antes de ele provar o fruto da segunda árvore, a da vida, que lhe daria a imortalidade.

Desde então, Adão e seus descendentes perseguem o mito da imortalidade, tentando contornar a precariedade da existência humana. As tentativas vêm desde a antigüidade, passando por René Descartes [filósofo francês, (1596-1650)], que em 1630 já perseguia o sonho da medicina infalível, até o limiar do século 21, através de projetos extraordinários, como o desejo de o homem alcançar Marte e outras paragens do sistema planetário, à procura de novidades e melhorias.

O pesquisador francês Lucien Sfez visitou o Brasil algum tempo atrás divulgando seu livro La santé parfaite -- critique d’une nouvelle utopie (A saúde perfeita – crítica de uma nova utopia), em que registra o fim da retórica pós-moderna, cara ao filósofo francês Jean-François Lyotard. Essa boa notícia, entretanto, foi apagada pelo alvorecer de uma ideologia ainda mais temível e já consistente neste final de milênio. Utilizando três projetos científicos em desenvolvimento avançado no mundo contemporâneo -- Genoma Humano, Biosfera II e Artificial Life – Sfez abordou a questão do ‘corpo virtual’: não se trata de uma mera reconstrução anatômica abstrata, que existe e não existe; é mais rica, mais informal, mais perfeita que nosso pobre corpo que oculta suas misérias, sem ser puro espírito mas um corpo-conceito mais elevado, mais ‘limpo’, mais complexo que o corpo-carne. “Que pensar desse objeto, senão que é da alçada da utopia e da ideologia ao mesmo tempo?”, questiona.

Ele refere-se à utopia, pois as metáforas estão presentes em todo seu pensamento de forma imperiosa, racional: “sondar rins e corações, que era atributo de Deus, não basta, pois os tecnocientistas necessitam de um corpo inteiro”, calculado, “que tende a substituir moralmente nossa pobre e imperfeita realidade pela razão todo-poderosa”. E essa razão não pode atingir a perfeição senão através das mãos dos sábios. Menciona a ideologia, pois seria inimaginável toda essa reconstrução acontecer sem a força determinante e infatigável de uma base conceitual de sustentação poderosa: a da tecnociência. Sua radicalidade crítica, unilateral e arrasadora, juntamente com uma notável ausência de senso de humor, alertam positivamente sobre instigadores desafios do terceiro milênio, tendo o efeito, também, de reabilitar o papel (ou a necessidade) das ideologias e utopias pelas quais grande parte das pessoas não nutre hoje muito entusiasmo.

Para Sfez, existe o perigo real de a técnica vir a dominar o mundo, a sociedade, a natureza, sem mediação científica nem conflitos sociais. Tomando o viés tecnocientífico como instrumento de apoio, destrói o pesquisador norte-americano Francis Fukuyama e sua teoria do ‘fim da história’. As mudanças genéticas possíveis -- vegetais, animais e humanas -- alteraram o curso da história. Esta, que tinha uma narrativa longa, foi substituída por pequenas narrativas fragmentadas. A engenharia genética trouxe-nos uma nova história.

Trata-se, assim, de superar o esgotamento dos mitos, o envelhecimento irreversível do mundo e das pessoas e de voltar ao essencial, à substância de nossa vida. Contra o fracasso da história e a precariedade da vida, somente a ideologia pode recriar a imagem do eterno retorno e da eterna permanência, em protesto contra a fragilidade de nossa condição social e humana.

A moralidade da clonagem

O filósofo alemão naturalizado norte-americano Hans Jonas (1902-1993) foi um dos primeiros pensadores, ao lado de seu compatriota Martin Heidegger (1889-1976), a detectar a caducidade dos termos em que tradicionalmente se exprimiam os questionamentos dirigidos pela ética ao progresso tecnocientífico: “Continuamos a discutir a técnica do ponto de vista da verdade antropológica, quer no sentido de ela realizar o verdadeiro sentido do humano, quer, opostamente, no sentido de ela constituir a própria negação do ser humano ou da natureza”. A técnica não pode ser nem eticamente submissa, nem histericamente dominadora.

Nessa discussão, podem ser indicados dois caminhos de análise: um tecnocientífico e outro bioético. Como não sou especialista em genética, prefiro ater-me a uma reflexão epistemológica. Parece-me que nesse campo tão complexo, a questão de fundo a ser discutida é ‘a moralidade da clonagem’. É moral clonar seres humanos? Se usarmos exclusivamente a emoção, nossa resposta imediata será ‘não’. Se, por outro lado,  o argumento for racional, seremos obrigados a interpretar duas identidades para o novo ser: uma genética (biológica) e outra  pessoal (antropológica).

O clone pode perfeitamente ser idêntico do ponto de vista biológico mas será sempre diferente do ponto de vista pessoal. Ao clonar as características genéticas, clona-se a biologia de um indivíduo, não sua personalidade. Apesar de algumas poucas constatações de semelhanças de personalidade registradas em gêmeos univitelinos, uma mesma identidade genérica/genética é acompanhada de diferente identidade específica (“Eu sou eu e minhas circunstâncias” -- José Ortega y Gasset [filósofo espanhol, 1883-1955]). Confundir identidade biológica com identidade pessoal é um abuso lógico, trata-se de mero reducionismo biológico que confunde identidade com especificidade.

Essa argumentação não pretende defender a moralidade da clonagem em seres humanos, mas, ao contrário, criticar a intolerância dos argumentos e das respostas, além da pobreza filosófica constatada nas discussões que têm acontecido no Brasil -- e no mundo -- sobre o tema. Pelo contrário, tenho defendido há algum tempo que temas como os limites da manipulação da ciência requerem, além de uma profunda dose de tolerância, sobretudo prudência e senso de responsabilidade. Em artigo publicado no jornal francês Libération, o filósofo francês Jean Baudrillard considerou “o clone, um crime perfeito (...). O conflito entre o original e sua cópia não está perto de terminar, nem aquele entre o real e o virtual”.

Se fosse detectada a proximidade de um novo dilúvio, que possivelmente exterminaria a espécie humana,  a ‘fabricação’ -- e duplicação -- de indivíduos capazes de respirar em meio aquático e preservar a única espécie animal pensante e temente a Deus, seria moralmente defensável? E seria moralmente lícita a ‘construção’ de uma variedade humana criada para resistir às radiações conseqüentes ao inevitável choque de um grande meteoro contra a Terra, com o mesmo argumento da questão anterior? Ou a ‘criação’ de espécies humanas resistentes a determinados tipos de vírus destruidores? Evitando confundir ‘clonagem’ com ‘intervenção’ ou ‘modificação genética’, creio que essas e muitas outras situações a serem imaginadas podem contribuir com o aprofundamento da reflexão.

A responsabilidade futura

A esta altura da argumentação, é prudente que avancemos ao segundo ponto já mencionado: à ética, ou melhor, à bioética, para evitar ser mal interpretado por algum leitor apressado. Nos dias atuais o homo sapiens se transforma em homo faber. Frente ao poder e à velocidade do processo científico e tecnológico que nos atropela todos os dias, é indispensável substituir as antigas éticas da contemporaneidade ou da imediatez por uma nova ética da prospectiva ou da responsabilidade futura.

Em busca da ética na era da técnica, Hans Jonas apresentou, entre outras, as seguintes proposições: 1) Toda ação deve se transformar em lei universal; 2) Todo semelhante deve ser tratado como um fim em si e não como um meio; 3) Os efeitos da ação devem ser compatíveis com a permanência da vida humana genuína; 4) Nenhuma condição de continuação indefinida da humanidade na Terra deve ser comprometida. Em resumo, “uma vez que é nada menos que a própria natureza que está em causa, a prudência se torna -- por si só -- nosso primeiro dever ético”.

Em outras palavras, aquilo que devemos ‘evitar’ a todo custo deve ser determinado por aquilo que devemos ‘preservar’ a qualquer preço. Um aspecto essencial no debate sobre a moralidade da clonagem em humanos se refere à vulnerabilidade que se criará a partir do fato de todos indivíduos passarem a ser biologicamente iguais, já que uma das maiores riquezas da raça humana está exatamente na sua variedade genética, na sua diversidade. Uma filosofia da natureza deverá articular o que ‘é’ cientificamente válido com o ‘deve’ das injunções morais. Entre os grandes problemas práticos da bioética, está a dificuldade em trabalhar a relação entre a certeza e a dúvida.

Apesar de alguns críticos radicais considerarem grande parte dos avanços da ciência como “perigosos”, é impossível imaginar a atual estrutura societária (ou biológica) como eterna e imutável. É compromisso da ciência, pois, preparar o futuro, antecipando-se a ele através de descobertas que venham trazer benefícios à espécie humana. A mutabilidade da sociedade e do mundo é uma ‘certeza’; a ‘dúvida’ reside em estabelecer o limite concreto até onde os avanços da ciência devam se verificar.

Por tudo isso, mais uma vez, resta-nos dirigir nosso ‘fazer’ com prudência e tolerância, entre os apertados limites do necessário e do possível. A sofisticada intervenção tecnocientífica em um meio não só natural como cultural, atravessado por atos de vontade e escolha apaixonada, é tão ‘humana’ quanto a ética, com a qual, nesse pé, pode estabelecer ‘diálogo’.